Cadú passou a infância no início dos anos 90, e ele e seus amigos tinham como diversão a rua, numa época em que não existia internet, celular e toda parafernalha que o avanço da tecnologia disponibiliza aos jovens da atualidade. Ora jogava betcha, ora jogava bola descalço e sem camiseta, ora soltava pipa, ora descia a ladeira num carrinho de rolemã, desenhando o trajeto pra quem vinha atrás em outro carrinho de rolemã também, com pó de mico no asfalto e etc, sendo assim feliz. Mas essas eram as brincadeiras que ele e sua turma exerciam diante dos olhos dos seus pais, pois muitas vezes, quando enjoavam dessas peripércias toda e comum de qualquer criança pobre da época, eles saiam pra quebrar os vidros de uma casa velha abandonada no bairro, pra apanhar seringuela no barranco, pra deslizar o corrimão da passarela que liga o bairro ao antigo Cine Aquárius num pedaço de papelão. Saíam pra pregar também chiclete mascado na campainha do vizinho pra sair correndo depois e algumas vezes, pra desafiar o trem de frente, era o mais perigoso, porém o mais divertido. Sim, sentavam eles pra conversar na linha férrea de dormentes velhos e cheio de farpas, que passa debaixo do viaduto que liga a avenida Murchid Homsi ao Parque da Represa Municipal, mas precisamente próximo a uma da tarde, no horário que o trem com dezenas de vagão carregados de soja, óleo, milho, algodão e etc passava.
Olha o trem! Alguém gritava avisando e os demais levantavam em seguida aguardando-o.
Duda costumava desafia-lo descendo a bermuda e urinando enquanto ele se aproximava, Kiko, Gordo e Dani, esperavam o trem se aproximar a poucos metros de distancia pra então fugir sem sair da linha férrea até aonde dava e pularem de banda, mas Cadú desafiava-o de frente, olhando pro farol e pra cara do maquinista que o ensurdecia com a buzina fazendo cara de espanto, pra depois só pular pro lado escapando da morte.
Mas o tempo passou, cresceram, constituindo família e cargos profissionais.
Ouvi dizer que Duda casou, esta morando na Zona Norte da cidade e abriu uma fábrica de semi-jóias nos fundos de casa. Dani, a unica menina que vivia no limite com os meninos, assumiu gostar de menias e mudou pra outro estado afim de estudar arquitetura, Gordo, já não é mais gordo e detesta quando um amigo de infancia que a reencontra lhe chame assim e Kiko, de todos foi o que eu recebi a pior notícia, pois dizem que ele esta acamado, não progride mas também não parti pra pior. As más linguas falam que ele tem HIV e não se cuidou a ponto de chegar a tal estágio.
Cadú era o único que ainda morava no mesmo bairro, na mesma rua, na mesma casa com os pais, sempre buscando novos rumos de desenvolvimento pessoal, sem querer cortar o cordão umbilical que o ligava do presente às lembranças da infância, apesar dos quase 30 anos de idade.
Certa vez, Cadú foi visto andando cabisbaixo, encurvado pra baixo e pra frente, como se carregasse um fardo invisível e pesado nas costas, numa tal tristeza que só ele entendia. Desceu a rua Aterradinho, caminhando em direção ao Júpiter Olímpico até então ver o trem fazendo a curva, saindo da estação, enquanto atravessava a linha férrea. Cadú lembrou de cada instante da infância sem juízo e quis sentir se ainda tinha a mesma coragem ficando estático diante do minhocão voraz de ferro, olhando pro farol do trem e pra cara do maquinista que a ensurdecia com a buzina e com cara de espanto, como um toureiro que encara o touro, como um jogador atento pra bater um pênalti.
Alguém gritou:
"Você é muito jovem pra morrer", mas a buzina do trem era tão alta que Cadú nem ouviu, saltando de lado, escapando da morte, provando que a mesma coragem de menino prevalecia em seu ímpeto, com a certeza de que a dor que lhe afligia se foi, carregado com a força da velocidade do trem.